Para os ancestrais dos primeiros israelitas, era passagem do inverno para a primavera, quando a exuberância da natureza assegurava o sustento dos rebanhos e das plantações. Tratava-se de um gesto de respeito supremo pela natureza e sua dinâmica.
Para os hebreus, era a passagem da escravidão para a liberdade. Memória da libertação experimentada; celebração da ação libertadora empreendida por Javé em face da opressão com que os egípcios escravizavam o povo de Israel. Era a fé consciente de seu engajamento histórico; uma bem equilibrada mescla de política e espiritualidade.
Para os cristãos, passagem da morte para a vida. Recordação perene da ressurreição de Jesus; sacramento da vida num mundo marcado pelos traços da morte. Símbolo supremo, por um lado, da transitoriedade humana e, de outro, da infinita potência da graça divina.
Curioso é que, em todos os casos, não há, necessariamente, a presença de uma instituição intermediadora. A celebração deveria ser realizada em casa, ao redor da mesa, narrando aos mais novos a história vivida, de modo a manter acesa a memória e a inspirar a esperança.
A páscoa hoje exige mais gente e menos festa. A páscoa hoje é um convite ao recolhimento que promove conhecimento de si mesmo; à sensibilidade que nos impulsiona na direção do outro; e à fé que nos encoraja a mergulhar no abismo infinito que é o coração de Deus.
Páscoa é passagem, nesse sentido: no permanente processo da caminhada de quem deixa pra trás o que não constrói e busca à frente aquilo que enche de significado a vida. Busca de quem compreende que a vida só tem sentido quando voltada para a (re)construção de um mundo pleno de justiça e paz.
Páscoa é o nome antigo do que hoje chamamos por espiritualidade, fé, cidadania, consciência, ética e tantos outras virtudes.
Celebrar a páscoa hoje exige mais que o ritual das religiões; demanda comprometimento no processo de transformação desse mundo vil, marcado pelo individualismo predatório e pela opressão dos mais fortes sobre os mais fracos; manchado pelos traços da morte.
Uma páscoa que se inspira na tradição bíblica passa, obrigatoriamente, pelo caminho do autoconhecimento, do cultivo de uma espiritualidade sadia; toca no plano político-social e atua como mola propulsora para a transformação.
Páscoa, em síntese, é uma sinfonia de espiritualidade com política, de cidadania com transcendência.
Ricardo Lengruber