Nos aproximamos das comemorações do dia da Reforma. Tradicionalmente esta celebração tem sido relacionada com o dia em que Martin Lutero afixou no portão da Igreja de Wittemberg as suas 95 Teses, mas não se pode perder de vista que a Reforma evangélica foi muito mais que isso. Ela foi um acontecimento de raiz religiosa, mas de implicações econômico-sociais.
Lutero não foi somente um grande renovador da fé cristã. Ele foi também um grande conhecedor das Escrituras Sagradas e, por conta disso, seu mais proeminente tradutor para a língua alemã. Sua tradução da Bíblia não foi a primeira, é verdade. Antes dele houve quem tivesse traduzido a Bíblia para o Alemão. O que distinguiu a sua tradução foram os princípios que a orientaram.
Para Lutero a tradução não deve desconsiderar o mundo (cultura) daqueles para quem o texto traduzido está sendo oferecido. Traduzindo o Novo Testamento do grego para o alemão, ele tinha a preocupação de que o texto final pudesse ser bem compreendido por seus ouvintes: a criança que brinca na rua, a dona de casa e o homem simples do mercado. Ele recomendava que o tradutor não focasse na complexidade da língua da qual se traduz, mas sim na forma com o povo se expressava. A Bíblia traduzida tinha que “falar a língua do Povo”.
Traduzir era para M. Lutero como que tirar pedras e paus do caminho de quem lê o texto da Palavra de Deus. Neste sentido, ele parece se aproximar do pensamento do filósofo e teórico da tradução Walter Benjamim quando este diz que não é somente a forma de bem compreender o original, mas também uma atividade que quase nunca é capaz de reproduzir o sentido que tem o texto original. Fidelidade ao original seria, pois, o mesmo que servilismo. M. Lutero quis resgatar, portanto, o profundo da significação do texto Sagrado, mas não o procurou em outro lugar senão no próprio universo linguístico do povo pobre. Exerceu uma forma antecipada de inculturação.
O texto original da Bíblia, quando traduzido, deve encontrar identificação com a cultura que o recebe. Nisto se revela o aspecto peculiar da tradução luterana. Ela encontra sua originalidade na medida exata em que se “atreve” a dar nova significação ao texto original. Ela o recria partindo da preocupação com sua intenção original.
M. Lutero julga e interpreta a palavra (e não a letra) que com mais fidelidade refletiria o que a Palavra de Deus queria dizer. É inculturação sim, na medida em que, os leitores do texto traduzido poderiam reconhecer ali, a Palavra de Deus em sua própria língua.
Na base da tradução de M. Lutero, não se pode negar, está subentendido a angústia de toda uma geração. A transição da Idade média para a Modernidade provocava a inquietação das pessoas. Era realmente uma época de medos e ansiedade. Tais sentimentos se corporificavam na lancinante pergunta de M. Lutero: “Como eu posso encontrar um Deus que me seja gracioso” (Wie kriege ich einen gnädigen Gott?). Sua teologia nasce desta pergunta e funcionou como uma tentativa de resgatar o verdadeiro sentido do Evangelho de Cristo: boa notícia de salvação para os que se encontram oprimidos. Daí a teologia da graça atuar como chave hermenêutica para toda a sua obra, inclusive seu conceito de estética.
Levy da Costa Bastos