Sobre a morte e o morrer …

(a propósito de Finados)

     A morte é, seguramente, um tema sobre o qual há muita resistência em se discutir. É, por outro lado, uma realidade sobre a qual não há o que se discutir! Todos morremos e, sobre tal verdade, não há possibilidade de qualquer aporia. A questão é como nos relacionamos com tal realidade. Há os que a negam, não aceitando por meio de elaborados discursos ideológicos. Há os que a ignoram, por meio do silêncio. 

     Está claro que a natureza nos dá fatos e, nos distinguimos dos demais animais, mais do que por consciência, pela capacidade de outorgarmos sentido novo e original para os referidos fatos. No caso da morte, mais do que saber de sua inevitabilidade, ousamos significá-la de modo que habite com um mínimo de conveniência nossos sistemas de pensamento, de valores e de atitudes. Em outras palavras, é porque encaramos a morte e sua inevitabilidade que optamos por assumi-la como uma espécie de companheira de viagem que nos ajuda a encontrar o caminho certo a trilhar.

     O cotidiano, porém, nos revela um relacionamento mais traumático com a morte. Violência, injustiça social, fome, enfermidades e tantos outros descaminhos nos fazem crer que seria possível evitar o fim. Obviamente, não está excluída a luta pela vida e pela dignidade dela; mas não nos é possível divagar sobre o foco principal e, de alguma forma, negar ou esconder a realidade. Todos morre(re)mos!

     Um elaborado sistema de negação da morte é o discurso científico. A medicina, por exemplo, quando investe todas as suas forças em esticar a vida a todo o custo nos frios CTIs, contribui para o prolongamento dos dias de vida, mas se esquece que o sentido e a qualidade da vida está um pouco distante da quantidade de dias vividos. Preferirei morrer em casa, ao lado dos meus queridos, sentindo o cheiro do meu lar, a dar meus últimos suspiros ouvindo bips e enxergando azulejos brancos, com hora pré-determinada para alguém me tocar.

     Outro discurso muito bem elaborado que, por vezes, pode nos levar a negação escamoteada da morte é a religião. Qualquer sistema religioso que se preze não excluí de seu elenco de assuntos a morte. Há, porém, modalidades nesses discursos que nos afastam da realidade e criam um mundo virtual no qual parece estar a verdade. No caso do Cristianismo, por exemplo, a fé na ressurreição, que se coloca como uma bela e profunda consciência sobre a morte e seu significado mais radical, pode transformar-se ideologicamente numa fuga da vida e de suas responsabilidades.

     Acredito que tanto a ciência quanto a religião, cada uma a seu modo e no seu lugar, devam nos ajudar a viver e, por conseqüência disso, nos ajudar a morrer, também, com mais coragem e com maior dignidade! Isso porque a morte é conseqüência da vida. Ou, de outra forma, a morte é parte integrante da vida. Vida e morte são uma linha de continuidade. A morte não pode ser encarada como um ponto ao fim da vida. Isso faz dela uma tragédia sobre a qual a vida perde seu significado. A morte, ao contrário, cria a expectativa da realidade. Como não temos todo o tempo ao nosso dispor, e como não sabemos a hora de nossa morte, cada instante de vida adquire um status plenamente original: é o único que dispomos. Ou o gozamos bem, ou corremos o risco de jogar tudo fora!

     Assim, morrer é uma tarefa que se constrói vivendo. A exemplo do que ocorre com a natureza – na medida que começamos a morrer no dia que nascemos, dada a provisoriedade dos sistemas vitais do corpo humano – importa-nos afinar nossa conduta de modo que cada dia vivido seja experimentado com a possibilidade de ter sido o último, sem que haja necessidade de um seguinte para corrigir alguma coisa. Quando isso ocorre, a morte ganha uma outra conotação: deixa de ser uma tragédia inevitável que nos toma de surpresa, e passa a ser uma amiga de todos os dias que nos lembra da fragilidade da vida e da importância de sua experiência radical, tanto no aspecto pessoal, como nas questões de natureza convivial.

     Nesse sentido, a morte dos outros pode nos ajudar a morrer melhor! Os que amamos e já se foram podem nos servir de alerta sobre a provisoriedade da existência e, dessa forma, contribuir para que ousemos viver com mais radicalidade. Que bom seria se pudéssemos desde bem cedo enxergar a morte dessa forma e com ela nos relacionarmos sem muitos traumas. Seríamos mais sensatos e mais corajosos! Os mortos não podem ser relegados ao esquecimento dos CTIs, dos necrotérios e dos cemitérios. Precisam fazer parte de nós e conosco conviverem. Não numa relação de luto constante que deprime e impede a vida, mas como alimento antropofágico que nos dá força e ressignifica nossa existência.

     Por fim, devo resgatar um exemplo bíblico que ilustra com radicalidade o significado profundo da morte. A cruz e a morte experimentada nela por Jesus não foram acidentes de percurso. A morte de Jesus de Nazaré foi  conseqüência de sua vida. Sua intransigente opção pelo bem e pelo amor o fizeram ter que encarar as ameaças da cruz. Como não recuou um milímetro em sua opção, a morte levantou-se como inevitável e é exatamente nesse sentido que a morte passou a fazer parte de sua vida; e, mais ainda, a morte deixou de ser fim e passou a ser inauguração de uma nova dimensão da caminhada: a ressurreição. O Cristo ressuscitado é o mesmo Jesus crucificado; carrega as mesmas chagas. A vida, porém, ascendeu a um novo patamar onde as fronteiras entre vida e morte ruíram e um Ser Humano novo, recriado, passou a viver plenamente!

     É isso – Tempus Fugit! Carpe diem!