Fundamentalismo cristão como uma atitude anti-histórica.

Uma aboradagem teológica.

Acerca dos conceitos

Fundamentalismo

História

A história é o palco onde a pessoa humana realiza-se existencialmente, constrói-se como ser de relações. Estando aberto para Deus (auto-transcendência) recebe dEste o comissionamento para interagir com seus semelhantes visando a responder criativamente aos desafios que lhe estão propostos no mundo. O ser humano não vive de si mesmo, ele é vocacionado por Deus a atuar na construção de sua história, fazendo da mesma a história de Deus. Como sujeito histórico1 sempre está a procura de realizar-se em plenitude, o que fará dele um ser insatisfeito com sua própria história.

Aos cristãos apresenta-se mais intenso este incômodo frente à sua realidade histórica. Sua certeza futura da vitória final do Evangelho lhe infunde uma esperança ativa tornando-o consciente de sua responsabilidade histórica. Sente-se determinado por Deus a transformá-la. Neste sentido, é sensato dizer que uma teologia da história converte-se em teologia da missão, pois a história passa a ser interpretada como um desafio de fé, por cuja transformação empenha-se o cristão decididamente.2

Todavia, os sinais prolépticos escatológicos que têm irrompido no tempo presente, não permitem que se confunda a história humana (por mais que esta avance) com o futuro definitivo de Deus. A memória da paixão de Cristo deve sempre servir como um juízo para a história da humanidade, uma vez que lembra a esta que o Reino de Deus é uma realidade que se deixa conhecer na história humana pela graça de Deus, mas que a transcende em todos os sentidos. Por isso o otimismo histórico (ideologia do progresso) deve fundar-se exclusivamente em Deus, de quem os cristãos são testemunhas testemunhas, de cujo Reino são mediadores de seus sinais antecipatórios.3

Reino de Deus: a irrupção histórica do Novum Divino.

O tema da justificação dos pecadores é indissociável do anúncio do reino de Deus feito por Jesus Cristo, em cuja vida (ensino e práxis) ele foi inaugurado. Em Cristo o reino se epifaniza como um sinal antecipatório da vida futura de cada justificado, mesmo que de forma fragmentária.4 O reinado de Cristo seria, desta forma, o ponto intermédio, que vem preceder a consumação da história, quando Deus será tudo em todos. Moltmann vê no Cristo a presencialização pessoal do reino, o que aconteceu por meio de Sua vida e anúncio. Compreender os mistérios do reino de Deus, pressupõe entregar-se apaixonadamente por seu anúncio.5 O mais fascinantemente conflitivo disto é que, os que se engajam em favor do Cristo (os justificados, portanto) no anúncio do reino de Deus não admitem a aceitação resignada do sofrimento humano e do mal no mundo, pelo contrário, destes se tornam radicais (tomados deste a raiz) oponentes.6

Os primeiros teólogos a perceber as identificações e as dessemelhanças entre o caráter escatológico da pregação de Jesus Cristo e a doutrina paulina da Justificação foram J. Weiss e A. Schweitzer. Jesus Cristo teria falado do reino de Deus, e da justiça inerente ao anúncio do mesmo, como se tratando de um evento futuro a irromper neste éon como uma estrepitosa intervenção Divina. Paulo por seu turno, referindo-se a esta mesma realidade teológica, o faz na compreensão de que, no evento do Cristo, o reino já se converteria numa realidade palpável. Na vida, morte e ressurreição de Cristo a justiça de Deus já havia sido inaugurada na história humana. Neste contexto é que devem ser interpretadas também as considerações acerca do futuro de que se serve Paulo. Jesus Cristo é a irrupção do novo de Deus na realidade histórica humana. Isto Paulo vê como o arremesso prospectivo dos crentes desde os influxos de um evento já vivido no passado. No passado de Jesus Cristo se revela o presente aberto para o futuro de Deus (gebrochene Gegenwart). O que deverá tornar-se realidade no tempo futuro pela graça de Deus, já teve seu início explícito na encarnação do verbo.

Contra o otimismo liberal protestante europeu do século XIX ou o Social Gospel7 estado-unidense dos começos do século XX, Moltmann argumenta que o reino de Deus não pode ser confundido com a realização de transformações históricas das relações injustas presentes no mundo dos homens, mesmo que também o seja. O reino de Deus, o qual irrompeu de forma explícita na vida e ensino de Jesus Cristo é mais uma questão de iniciativa e dom Divino do que de tarefa ou esforço humano, ainda que não os dispense. Ele é, na verdade, um evento trascendente, é mesmo uma criação Divina. Moltmann reflete em base cristológica, servindo-se de uma analogia: se a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é um evento que faz irromper o qualitativamente novo, isto significa dizer que o reino de Deus não pode ser igualmente algo menos do que uma “nova creatio”.8 Esta Nova Criação é algo totalmente novo (incipit vita nova), mas que, todavia, pressume a antiga. Deus pressupõe a realidade já dada para construir o Seu reino, o que metaforicamente equivale dizer que os justificados são convidados a ser co-implantadores do reino Divino neste mundo. Isto significa igualmente a negação tácita da Restituitio ad integrum (retorno a um suposto estado idílico de vida no mundo), mas aceitação da renovatio omnion (irrupção daquilo que é qualitativamente diferente sobre esta realidade).9

Mesmo que o reino de Deus não seja ainda uma realidade definitiva e totalizante neste tempo, seus primeiros sinais antecipatórios já foram dados por Jesus Cristo, futuro realizado do Pai no mundo. A comunidade dos justificados (a igreja) deve portanto, na fragilidade de sua existência e de modo fragmentário, sinalizar o reino de Deus neste mundo. É exatamente num contexto como este é que o reino de Deus se revela como uma realidade antecipadora da Nova Criação final do Deus Trino, a qual abrangerá tanto a terra, quanto o céu.10 A existência dos justificados se converte numa experiência de luta e confrontação contínua contra as forças do anti-reino.(Gl. 5,16ss; Ef. 5,3-21; 6,10-13). Ao sinalizar os valorres do reino de Deus no seguimento de Jesus Cristo, os justificados devem estar prontos para se deparar com a perseguição e o martírio, pois a luz não concilia-se com as trevas.

Moltmann é contundente em favor da idéia de que o reino de Deus se constrói desde a vontade soberana de Deus, tendo, todavia, os seres humanos e a criação tomam parte neste processo. Ele não é uma realidade que se abstrai de tudo o que existe, mas sim a potencialização libertadora das mesmas. Isto significa dizer que a justiça do reino não pode ser esgotada na justiça humana, mas isto também não quer dizer que a desconsidere. Sempre que os seres humanos desenvolvem formas de convívio social mais humanas e mais justas, aí o reino, já está presente, ainda que de forma fragmantária e imperfeita.

O reino de Deus não deve ser pensado como um evento futuro, sem qualquer relação com o tempo presente. Quanto mais intensamente a igreja, no poder do Espírito de Deus, o sinaliza, maior será sua vitalidade evangélico e missionária. Isto acontece todas as vezes em que se puder experienciar autenticamente o amor de Deus pelas pessoas, preferencialmente pelos pobres e oprimidos, onde se permite brotar a vida num mundo de morte, onde se vêem reacesos os ânimos dos desesperados para a vida.11

Na Justificação dos ímpios irrompe o reino de Deus, neste contexto se dá a superação do auto-encarceramento da pessoa humana sobre si mesma e sua abertura para o amor de Deus.Trata-se de um evento criado a partir do nada (creatio ex nihilo). Moltmann identifica a presença sanadora do reino de Deus nos momentos mais marcantes da vida, a saber: quando relacionado com a morte, o reino de Deus se presencializa como vida, e quando se relaciona com a doença, este mesmo reino é chamado de cura. A “cura social” de Jesus aconteceu sempre que este acolhia os desprezados da terra. Quando se assentou à mesa junto de publicanos e pecadores, Jesus antecipou o banquete futuro do reino de Deus. Neste sentido pode se dizer com Moltmann que o reino de Deus revela sua face mais graciosa quando Deus, por meio de Seu Cristo, toma partido dos pobres para assim, salvar até mesmo os ricos, libertando-os de sua auto-suficiência. No anúncio de Jesus, o reino de Deus, entretanto, é um oferecimento aos pobres de uma certeza de sua dignidade imperturbável ante aos olhos de Deus. Nisto revela sua dimensão mais explícita de ação graciosa de Deus em favor de todo gênero humano.12

O reino de Deus é nada mais, nada menos do que a Nova Criação de todas as coisas e a regeneração de tudo quanto vive. Ele é tão diversificado quanto a criação que conhecemos. O reino de Deus não representa o empobrecimento mas sim um enriquecimento ainda maior da criação. O reino de Deus não destrói esta criação, como afirmou Marcião, que por isso foi, com razão excluído da comunidade cristã em roma. O reino de Deus é antes a primavera escatológica de toda a criação.”13

O reino de Deus é uma evento abrangente, abarcando a totalidade da criação. Ele trata-se de uma realidade cujo espectro alcança tanto o aquém quanto o além. É um acontecimento futuro, mas presente neste tempo. Ele é “já” histórico entre os filhos de Deus, mais “ainda não” totalmente. Na verdade o reino está aí, entre os que vivem suas vidas pautadas nos valores do evangelho de Cristo. No evento salvífico de Cristo, de modo especial em Sua cruz, convergem todas os caminhos do reino de Deus. Para Moltmann, a conexão íntima entre a cruz e a ressurreição de Cristo, comunicam ao reino de Deus historicidade, faz dele uma realidade eminentemente pertencente a este mundo. Em Cristo, este reino de Deus se torna uma realidade de oposição e contradição francas à este mundo carcomido pelo mal e pela morte, sob a força do pecado.14 Na verdade é a cruz de Cristo que vai permitir plantar definitivamente o reino de Deus na terra, na história humana.

O reino de Deus é uma experiência presente na comunidade dos seguidores de Jesus Cristo. Trata-se, por isso, de um objeto de esperança fundamentada na experiência e na recordação. Se o reino de Deus já é experimentado na comunidade de fé, isto significa dizer que pode-se esperar por ele em sua plenitude incorruptível no porvir. Isto permite, inclusive, concluir que a experiência e a esperança se fortalecem mutuamente.15

A causa máxima da vida e ministério de Jesus Cristo foi o reino de Deus (Mt. 6,33)16, mas não somente a dEle, senão a de todos os homens e mulheres que crêem no Seu anúncio salvífico, os quais estão por isso convocados a serem colaboradores de Deus. Esta mensagem deve arremeçar os seres humanos justificados para além dos limites e fronteiras da igreja, pois o reino de Deus é realidade trans-eclesial, não se tratando-se de uma realidade circunscrita ou condicionada ao âmbito da moral ou do “espiritual”, que somente dentro dos limites da igreja possa ser vivenciado. A verdade histórica tem demonstrado que lamentavelmente, não poucas vezes, foram praticados dentro da igreja atos que mais negaram que afirmaram a realidade do reino de Deus. Os cristãos de hoje devem estar convecidos de que a igreja é um sacramento do reino, mas não pode ser confundida com ele. Moltmann está convecido de que a igreja não tem santidade em si mesma, mas nAquele que a justifica. Esta sua santidade se expressa, portanto, no “agir santificante” de Cristo em seu seio.17

Quando reconhece-se que os sinais do reino de Deus se deixam confundir com todos os atos humanos que têm sua base no amor Divino, surge a necessidade de que os justificados cultivem uma atitude ecumênica com todos os homens. Isto significa reconhecer que no quotidiano da vida de muitas pessoas podem ser reconhecidas muitas marcas evangélicas, ainda que inconscientemente.18 O reino de Deus se converte, por isso na base de uma atitude marcada por diálogo e aceitação do que é diferente. Num mundo onde a intolerância dos mais variadas matizes ameaça a convivência humana, o reino de Deus revela-se como um espaço de acolhida e compreensão recíproca.19 Fazer do reino de Deus um projeto central para a existência crente significa, portanto: a humanização absoluta das relações inter-pessoais; a democratização da vivência política; a socialização da economia visando a erradicação da miséria; a naturalização da cultura e a orientação da comunidade eclesial nestas direções.20

Promessa e construção da história.

A experiência da Justificação não alcança plenitude salvífica quando é vivida em atitude de individualismo e isolamento do mundo. Os justificados não “conquistam-se”21 a si mesmos, enquanto pessoas de vocação transcendente quando se afastam do mundo, mas sim na “exteriorização” para dentro do mundo, e da história em que vivem. A autenticidade desta experiência de fé está diretamente relacionada com a capacidade destes de romperem com o narcísico círculo centrado sobre si mesmos e abrir-se para a mundo, tornando-se instrumentos de Deus para a sua redenção.

A história, que não é um transcorrer imperturbável de acontecimentos sincrônicos, pressupõe um envolvimento dos justificados. Nela os justificados fazem-se e refazem-se como sujeitos de abertura e transcendência, como sujeitos históricos. E isto é uma das grandes conquistas da modernidade. O crente justificado por Deus deve reconhecer-se como convocado a estar no mundo e a nele intervir, fazendo a diferença qualitativa. Ser sujeito na história é ser capaz de interpretar os sinais dos tempos e identificar os desafios e possiblidades que aí se apresentam. O reconhecimento desta capacidade por parte do gênero humano é que o torna efetivamente pessoa.22 Negar ou omitir-se frente a este chamado é anular-se. O sujeito histórico é um ser de relações que se constrói no encontro com os outros, na história humana. Por meio da promessa de Deus, o ser humano justificado se vê constrangido a agir na história.

O conhecimento que se faz de Deus não é neutro ou imperturbável. Ele rompe com toda existência letárgica, é mesmo um conhecimento “apaixonado”, que toca existencialmente tanto o sujeito cognoscente, quanto o “objeto” a ser conhecido. Conhecer a Deus significa, então, se sentir impelido para a vida e para intervir na história, visto que o Deus das Escrituras Sagradas é o Deus da promessa, a qual coloca o homem numa instransponível diferença e oposição face à realidade presente no mundo.23 O Deus bíblico dá à história de Seu povo um direcionamento rumo ao futuro. Deus não pode ser coisificado, uma vez que é um ser que transcende à capacidade de compreensão do homem. Ele é sempre um mistério absoluto. Absconditus et revelatus (escondido e revelado) Ele se humanizou em Cristo, viveu Sua kenosis extrema na cruz. Tudo isto expressa Sua auto-manifestação redentora. Nesta Sua revelação Deus não pretendeu proteger o presente, mas orientar os ouvintes (interlocutores) de sua promessa para o futuro, desalojando-os de onde estão, constrangendo-lhes a caminharem rumo à terra prometida, mantendo-os em êxodo constante. A revelação de Deus na promessa produz uma história aberta compreendida pela missão da esperança, transformando a realidade em que vivem os justificados. 24

A promessa é uma das categorias escatológicas mais recorrentemente utilizadas por Moltmann. Trata-se de um conceito que cria a vida, instiga à transcendência da pessoa humana sobre si mesma, possibilitando sua abertura ao ainda não vivido. Ela atua como um aguilhão, empurrando tudo para o futuro, dando à vida uma dimensão eminentemente prospectiva. Isto comunica à toda a existência histórica humana um caráter transitório e superável, trata-se assim de uma “promissio inquieta”. O melhor das realizações humanas ainda será pouco diante daquilo e para aquilo que a promessa convoca a ser e alcançar. A promessa, portanto, liga os justificados ao futuro abrindo-lhes assim o verdadeiro sentido para a história.25 Somente pela promessa (visão de futuro) e da missão decorrente desta (comissionamento) o sentido da história se revela claro às pessoas, convertendo-se num fator impulsionador da história humana como um todo.26

A filosofia da história moderna traz em sua base uma filosofia da crise, visto que o homem moderno se vê diante de possibilidades nunca antes vivenciadas, tanto para o bem quanto para o mal. Todavia, o fenômeno da historicização e racionalização da história acabou por se tornar a abolição e consequentemente a morte da mesma na vida humana e social, além de subvertê-la na ideia entusiástico-messiânica do “fim da histórica”. 27 O que se tem observado é que a civilização atual demonstra ter perdido a esperança, parece ter sido submergida num oceano de sem-sentido. As utopias extinguiram-se, junto com elas, o desejo de transformar o mundo. Se o risco que corre o cristianismo diante do fundamentalismo bíblico é a redução da pessoa a um ser a-histórico, aqui o perigo que ronda a fé autêntica é considerar este tempo como sendo o tempo do fim da história. Este tempo que hoje se vive seria para R. Seidenberg o perído pós-histórico definitivo da humanidade.28 Moltmann menciona a tese de F. Fukuyama como uma referência emblemática deste pensamento. Fukuyama, servindo-se de uma base teórica hegeliana, argumenta que, com a derrocada do socialismo real em 1989, o ocidente triunfou definitivamente, esgotando-se dessa forma, todas as tentativas de criação de caminhos alternativos ao capitalismo liberal.

Moltmann rejeita tal tese, formulando uma crítica dura contra os profetas da pós-história. A fragilidade básica destes estaria no desconhecimento de que a civilização humana sempre foi capaz de superar-se quando os sistemas socioeconômicos por ela criados já não eram capazes de responder aos seus anseios. Esta capacidade de reconhecimento de contradições internas na história foi detectada por hegelianos de esquerda como K. Marx. Moltmann não concorda que a futura civilização tenha necessariamente que ser engolfada pelo tédio e o sem-sentido. Mas as contradições explícitas dentro do sistema (qualquer sistema) é que despertarão forças latentes visando a sua superação. A este respeito assim se expressa:

 

… com certeza, não será o tédio dos filhos dos ricos que levará à reanimação da história, mas a miséria real das pessoas humilhadas e as organizações violentadas da terra não permitirão que este estado do mundo continue assim como está, pois ‘quem quer que o mundo permaneça como está, não quer que ele permaneça’ (Erich Fried)” 29

 

Moltmann está convencido de que o conceito de história seja uma criação dos profetas de israel, para os quais esta não seria só passado, mas também futuro. Assim podem-se ver as transformações internas da mesma como aquilo que contém o “possível”, medido na promessa de Deus. A história é assim percebida pelas categorias do Novum e do prometido que nela se busca. Em lugar de contemplação e visão desapaixonadas, surgem a expectativa apaixonada e a missão participante que impele para frente.30 A história passa, desta forma, a ser compreendida como realidade aberta para a promessa, teleologicamente conduzida para a vontade de Deus no fim dos tempos. Na raíz da teologia da história moltmanniana está a proposição de que os conceitos históricos devam ser conceitos carregados de dinamicidade, os quais venham a imprimir-lhe uma perspectiva orientada para o futuro, transformadora da realidade portanto. A história deve conter uma força que a empurra para frente, que determina suas transformações internas, esta força é a promessa Divina.31

A promessa Divina faz brotar um dado novo na realidade humana. Faz surgir possibilidades até então impensáveis ou, até então, consideradas impossíveis de serem atualizadas. Ela enuncia a verdade que ainda não existe, por meio da qual o futuro supera tanto o real possível, quanto o real impossível.32 Esta realidade impossível de ser pensada dentro das limitações da existencialidade humana se corporifica em muitos eventos revelatórios divinos como o êxodo e a aliança, mas explicita-se inconfundivelmente na ressurreição dentre os mortos de Jesus Cristo. Este acontecimento de caráter redentor é uma indicação daquilo que espera todos os filhos de Deus, mas que igualmente inspira a vida dos justificados. A morte, bem como todas as suas expressões opressivas presentes nesta história já têm sido vencidas pela ressurreição do Cristo de Deus. A ressurreição de Jesus Cristo é a promessa pro excelência, a partir da qual todas as demais gravitam.

 

Promissio Divina: fator fundante da missio dos justificados.

Assim como o corpo anseia pala ressurreição, pela superação definitiva da morte, a fé que determina a vida dos justificados de Deus se orienta para algo que ainda não está cumprido, para o que lhes foi prometido pela Palavra de Deus. Também o ser humano, por conta de sua incompletude existencial acha-se aberto para o futuro, a procura de significação para sua realização. O homem busca ansiosamente aquilo que ainda não foi por ele vivenciado. O crente justificado torna-se pela ação do Espírito de Deus um “esperante”, sendo ainda futuro para si mesmo. Desde a promessa Divina os justificados deparam-se com uma realidade que demanda inserção responsável, confrontamento e transformação. A diferença qualitativa entre aquilo que Deus promete e o que se vê no mundo, faz surgir um estado de insatisfação naqueles aos quais foi tornado possível conhecer a vontade de Deus (1 Co. 2,9-12). Na verdade o crente justificado por Deus sente-se em harmonia interna consigo mesmo in spe (em esperança), uma vez que conhece o futuro de sua história com Deus, mas desarmoniza-se com a mundo in re (na realidade). Isto acontece por eficácia instrumental da promessa Divina. A força operante da Promissio do reino do Pai fundamenta a Missio (ação missionária) do amor apaixonado dos justificados pelo mundo. Os habilita a tornarem-se apátridas com os sem uma pátria, ficarem sem paz em solidária comunhão com os sem paz no mundo, tornarem-se injustiçados na companhia dos injustiçados da terra, por causa da Justiça de Deus que virá plenamente no futuro (Mt. 5,10-12).33

A promessa, em vez de alimentar uma expectativa exclusiva para além da história, fazendo-se resignação e fuga fatalista ante aos problemas da vida, deve levar ao engajamento dos justificados pela redenção da criação como um todo já neste éon. Para Moltmann é qualidade intrínseca da promessa manter os justificados inquietos enquanto estes não virem a realidade na qual estão inseridos ser transformada em correspondência àquela desejada por Deus. A promessa infunde, pois, insatisfação no coração dos justificados, o que não permite que estes se reconciliem com um mundo onde ainda não esteja presente, nem cumprido ou realizado a vontade plena de Deus, a saber Sua justiça e verdade. A promessa Divina é um conceito que anuncia uma realidade ainda não existente, um ou-topos, um lugar que não é ainda real como um ato concreto, mas que o é, enquanto instrumento inspirador das ações dos filhos de Deus no mundo, uma vez que estes nisto se inspiram para fazerem-se agentes históricos.34

Para Jürgen Moltmann a religiosidade de fundo nomádico-israelita é uma realidade que foi plasmada dentro da perspectiva da promessa. Literalmente “a ‘experiência da história’ feita pelos israelitas foi possibilitada pela fé na promessa.”35 O Deus “nômade” é o Deus da migração, fazendo a existência humana ser percebida como um processo histórico. Mesmo ao tornar-se sedentário o povo israelita continuou a crer na promessa, pois muitas delas ainda estavam por se cumprir. Isto se deu basicamente por causa daquilo que Moltmann denomina de “inesgotabilidade” do Deus da promessa. Na história do povo israelita a promessa desempenhou o papel de abrir o horizonte de sua história, isto é, determinando a ausência de limites fixos. Promessa visa sempre seu cumprimento. Somente onde Javé se revelava por meio de Sua obra é que Israel via a história, no êxodo do Egito o povo como um todo experimentou aquilo que Abrão viveu pessoalmente, a saber: o chamado da peregrinação, a sair de si si e ir rumo à realização do que Deus prometia (Gn. 12,1-3).36

 

Visto, porém, que o que de fato foi prometido é, em todas as promessas concretas, a própria presença de Deus prometedor, sempre de novo acontece o renascimento para a esperança, seja de desilusões, seja de cumprimentos. Todas as promessas particulares, como grande descendência, terra prometida, benção para os povos, etc., apontam para além de si mesmas para a própria presença do Deus vindouro, para o reino de Sua glória, para a teofania perfeita, para a Nova Criação…”

 

Os progressos históricos se deram como acontecimentos resultantes da tensão criativa entre aquilo que Deus havia prometido e o que ainda era a realidade negativa da experiência de vida quotidiana do povo. Em função disto, Deus se tornou conhecido entre Seu povo como o Deus que cumpria Suas promessas, que as epifanizava na história. Isto equivale a dizer que Ele não se deixava conhecer como atuante a posteriori, mas no meio da história, enquanto esta acontecia. A ideia de um Deus “ataráxico”, apático ante os eventos históricos, foi superada pela do Deus que se imiscuía redentora e apaixonadamente nas vicissitudes humanas. Constrangendo amorosamente Seus filhos a fazerem de sua existência um contínuo êxodo.37

O Deus bíblico se identifica com a promessa, isto o opõe radicalmente ao deus apático helênico. Se ao deus grego da epifania se pergunta por onde e quando o eterno, imutável se manifesta na forma humana, efêmera e temporal, ao Deus da promessa, por outro lado, é questionado onde e quando se revela o Deus da esperança e do futuro da verdade. O deus grego é o deus das possibilidades esgotadas, da perspectiva determinista da história. É um deus sem futuro. O Deus de israel, em contrapartida, é o Deus que cria novas possibilidades sempre a cada dia. Faz, ex nihilo, surgir a vida, permitindo que desde a morte esta seja ressuscitada.38

Para Moltmann a justiça justificadora de Deus não é outra coisa senão Sua fidelidade à Sua promessa.39 Ele é justo, exatamente porque, cumprindo Sua promessa, justifica os injustos e estabelece Sua justiça para os que sofrem injustiça.40 Os seres humanos chegam à justiça de Deus no momento em que confiam na fidelidade de Deus segundo a Sua promessa.A justiça de Deus se expressa no Seu agir criador, na vida particular e na história social daqueles e para aqueles que se veem ameaçados pela morte absoluta e pelo pecado; pecado este que é visto por Moltmann como sendo o auto-isolamento dos homens em relação a Deus, a fonte de vida.41 Pecado é, pois, a negação da promessa, o que se expressa no auto-encarceramento da pessoa, deixando de agir transformadoramente na história. É exatamente neste ponto tem inicio a destruição social do gênero humano, a saber em sua tentativa de auto-divinização.42

Para Moltmann as promessas feitas por Deus ao Seu povo na antiga aliança não são restritivas à comunidade judaica, mas dirigem-se à todos, tem caráter inclusivo (Gn. 12,3b). Em Jesus Cristo a promessa de Deus se torna explicitamente universal. Na encarnação do Cristo de Deus se dá então a virtualização da promessa, ela converte-se em evento concreto, desde então ela será irreversivelmente e para sempre, imperecível para todos os seres humanos. Em Cristo se superam todos os exclusivismos: o Deus de Abraão se torna de forma incondicional o Deus de todos os povos da terra.43 Todavia, esta promessa de alcance universal deve se tornar um evento efetivo na vida das pessoas. Para Moltmann o evangelho da promessa de Cristo já está presente na história, mas somente como promessa, uma vez que nEle, todas as promessa de Deus são confirmadas e virtualizadas, mas não cumpridas ainda. Isto comunica um caráter sempre aberto para a existência de pessoas, para a história humana, para a criação.44

O Novo Testamento incorporou tal compreensão de forma criativa por instrumentalidade de Paulo. Moltmann detectou a conexão entre as duas abordagens na escatologia paulina, na medida em que essa se revela como uma “eschatologia crucis”, elaborada desde a “reserva escatológica”. Neste esforço ele faz veemente oposição à concepção grega de uma “escatologia presêntica”. A este “presentismo” helênico, opõe o eschaton ainda por vir, o qual mantém a história viva através da crítica e da esperança. A lógica interna do eschaton é também a promessa daquilo que ainda não existe e por isso faz história. A promessa anunciadora do eschaton atua como o motor e fermento para a história humana. O que Moltmann descortina com propriedade é que a concepção paulina vai afirmar que o mundo presente ainda não é aquilo que está colocado à sua frente, não alcançou identificação com a vontade de Deus.45

Paulo não ignora as contradições de seu tempo, mas espera a vitória de Deus sobre elas. Ele, na verdade reconhece que a esperança da ressurreição futura pressupõe a experiência da cruz numa entrega de amor e de obediência neste éon. Através de sua obra teológica triunfou uma compreensão escatológica do reino de Deus sobre o entusiasmo escatológico e cúltico. O messianismo, o qual traz consigo a riqueza da promessa que se fundiu na vida histórica do povo israelita, contribuiu imensamente para que permanecessem acesas as esperanças do povo, mesmo nos momentos de maior sofrimento. Para Moltmann a importância deste movimento no interior da religião judaica está no fato de ela comunicar uma dimensão política ao pensamento histórico do povo.46

Tirar consequências destas propostas significa o exercício de conversão (metanóia), uma mudança de valores, bem como de perspectivas. A fé evangélico-reformada precisa se orientar pela promessa, uma vez que o correlato da fé é a promessa e não a revelação. Isto significa redesenhar sua relação com o futuro, e deste com o presente. Uma mudança de foco e de orientação por parte do fundamentalismo biblicista permitiria o incentivo da ação efetiva dos cristãos neste mundo, sempre se reportando ao futuro de Deus, isto é, àquilo que Deus efetivamente quer fazer na história e na criação. O futuro não deve ser interpretado como esgotamento inexorável daquilo que se pode fazer nesta vida, mas seu fator potencializador.47 Se o futuro é o encontro da palavra da promessa com a realidade correspondente, isto será sempre, pois, o fator a converter a história em fascinante espaço de ação criativa humana. Toda e qualquer incongruência entre o imperativo da promessa (o que Deus deseja para Sua criação como um todo) e o indicativo da vida humana (o que realmente é experienciado em seu quotidiano) será sempre fator inspirador de forças renovadoras na vida dos justificados.48

A história humana é o palco por excelência no qual os justificados protaganizam seu chamado Divino. A fé que o Espírito de Deus gesta no coração dos crentes os livra do entorpecimento e do desespero, mantendo acesa a esperança ativa na vida, mesmo e especialmente quando esta encontra-se fragilizada e sob risco de morte e aniquilação. A vida entendida como a totalidade da criação é um desafio para o homem de fé. Moltmann entende que o pathos Divino é autenticamente assumido pelos justificados quando estes reconhecem nos suspiros da criação, um compromisso a ser assumido, visando a sua libertação.49 A escatologia de Moltmann completa-se com sua abordagem ao cosmos, mas especificamente nos eventos que abarcam a totalidade do mundo criado.

1 O ser humano está sempre a caminho em status viatoris, cf. Dell Valle, B., Filosofia do homem, pp. 53-56

2 Boff, C., Teologia e prática, pp. 108-111.

3 Gefré, C., Como fazer teologia hoje, pp. 184-204.

4 Hoffnung, p. 277.

5 Quem, p. 11.

6 Gekreuzigte, p. 267.

7 Rauschenbusch, W., Christianity and the social crisis.

8 Hoffnung, pp. 258-260

9 Kommen, p. 285.

10 Geist, p. 191.

11 Quem, p. 16.

12 Quem, pp. 19-21.

13 Geist, p. 186.

14 Hoffnung, p. 259.

15 Quem, p. 23.

16 Para França Miranda “ … a vinda definitiva do reino de Deus irrompe na pessoa e nas ações de Jesus e se manifesta na presença antecipada do escatológico em Sua ressurreição.” Cf.: Miranda, M. F., O cristianismo em face das religiões, p. 50. Abrangente abordagem sobre a centralidade do reino de Deus na vida de Jesus é oferecido por Schillebeeckx, E., História humana revelação de Deus, pp. 150-164.

17 Kirche, pp. 363-388; Quem, pp. 25-26

18 Ao que Karl Rahner denominou de “cristianismo anônimo”. No seu entender “… não é possível duvidar que uma pessoa, que não se acha vinculada de alguma maneira histórica concreta com a pregação explícita do cristianismo, possa, contudo, ser justificada vivendo na graça de Deus.” Cf.: Rahner, K., op. cit., p. 213. Interessante desdobramento deste raciocínio de Rahner é feito por André Queiruga, para quem o ateísmo moderno (nas suas mais diversas manifestações), deve se tornar um problema teológico. Cf.: Queiruga, A. T., Creio em Deus Pai, pp. 16-45.

19 Nesta direção caminha a reflexão de França Miranda ao redor do tema do diálogo inter-religioso. No seu entender a pluralidade de percepções que o indivíduo crente (cristão ou não) tem do Absoluto, deve relativizar sempre a experiência que se faz de Deus, a qual se dá sempre sob os condicionamentos de um determinado horizonte de compreensão, mas isso não pode equivaler, todavia, à relativização do Absoluto propriamente. Para ele “… a experiência feita com o Absoluto é sempre experiência contextualizada, portanto limitada e relativa; o mesmo vale para suas expressões.” As experiências que as pessoas fazem de Deus fora do cristianismo são “… importantes para a própria compreensão que o cristianismo tem de si mesmo (…) … as outras religiões podem lhe desvendar, através da ‘sementes do Verbo’ nelas presentes, o que no próprio cristianismo estava escondido”. Cf. Miranda, M. F., Um catolicismo desafiado, p. 34.

20 Quem, p. 28.

21 Esta expressão deve ser entendida em sentido existencialista, uma vez que quer significar que a vida humana é um processo contínuo de realização das potencialidades da pessoa humana em processo histórico de existir (ser no tempo/ dasein).

22 Pormenorizada discussão sobre o conceito de pessoa encontra-se em: Rubio, A. G., op. Cit.,, pp. 245-256

23 Hoffnung, p. 162.

24 Idem, p. 109.

25 ibid, p. 93.

26 ibid, p. 337.

27 ibid, p. 278.

28 Kommen, pp. 243-244

29 Kommen, p. 246.

30 Hoffnung, p. 307.

31 idem, p. 322.

32Ibid., p. 90.

33 Ibid., p. 261.

34 Ibid, pp. 112-114.

35 Caminho, p. 319.

36 Hoffnung, pp. 116-117.

37 idem, p. 132.

38 ibid, p. 37.

39 Zukunft, p. 166.

40 Caminho, p. 251.

41 Gustav Aulén destacou igualmente o pecado como sendo perversão da vontade humna mas que na sua essência significa não permitir que Deus seja o condutor da vida da pessoa humana. Para ele “… se a fé significa viver sob o domínio de Deus, então o pecado como descrença significa que Deus não domina. Mais, que esse domínio é exercido por outra entidade que não a vontade amorosa de Deus. Esse outro poder que governa o homem em pecado é o próprio eu do homem. (…) Quando a vontade Divina não domina, o homem está, como diz Lutero, incurvatus in se, isto é, egoisticamente voltado para si mesmo.” Cf.: Aulén, G., A Fé cristã, p. 228.

42 Caminho, p. 252.

43 Hoffnung, p. 166.

44 Idem., p. 267.

45 Ibid., p. 188.

46 Ibid,, p. 321.

47 Ibid, p. 37.

48 ibid, p. 113.

49 Trinität, p. 42.